sexta-feira, 30 de julho de 2010

Isso que me olha

[...] a gente não gostava de explicar as imagens porque explicar afasta as falas da imaginação (Manoel de Barros)

Um

Um homem procura uma mulher pelas estepes siberianas, recusando todas as recomendações de seu amigo quanto ao risco de sua empreitada. Sim, a mulher é casada, sim, tem uma filha, sim, sim, o marido é ciumento, esse encontro que ele busca, que o obceca, pode matá-lo. Mas não há apelo à razão que possa deslocá-lo de seu movimento e sua fissura. É preciso, é urgente falar com ela. Sua aflição o arrasta, carrega o que quer que encontre em seu caminho, as dores, as ânsias, os olhos, ah, sim, todos os olhos que buscam capturá-lo, pará-lo por um instante que seja, reconhecê-lo no que o move.
Seu movimento, que ignora qualquer barreira, encontra outros movimentos, outras ânsias, outras perambulações. Movimentos que entretanto não lhe dão continência. A mulher, um ponto vermelho na paisagem dourada, um ponto que o ignora e que ele busca, está lá, não exatamente à espera, mas visível sob a luz intensa que a faz emergir única, singular, como pólo irresistível de atração. O que os separa, uma brecha, uma fissura no terreno, marcando o lugar de onde ele fala, interpela, demanda, e o da mulher e a filha que ela chama, sustentando-se numa quase indiferença que o incita, que o provoca. Um corpo que existe à sua revelia, embora só tenha existência porque, de seu lugar, de seu desejo, ele o olha e o interpela. E esta é a questão que ele lança, insistente: estivemos juntos numa festa, lembra-se?, e você me olhou. E agora, o que fazer com isso? O que fazer disso, desse acontecimento singular, desse encontro de olhares? O que fazer dessa captura? A pergunta ansiosa do homem encontra a plácida resposta da mulher que ao mesmo tempo o evita e o atrai: não sei...

Dois

A escola descobre o cinema. Essa descoberta assume várias formas. A mais comum e prosaica é o uso do cinema como dispositivo temático. Exibe-se um filme como suporte para algo que se pretende apresentar aos alunos. São abundantes hoje as indicações de filmes para se trabalhar isto ou aquilo a partir de seu conteúdo. Trabalha-se, assim, saúde, história, geografia, ecologia, ética, relações humanas com o recurso aos exemplos. Este é um uso moral do cinema, pois ele supõe sempre a existência de um modelo, de uma referência pré-dada em relação ao qual algum ajuste se propõe, tendo como resultado esperado e final uma compreensão do tema proposto. O filme como narrativa, como texto, está em segundo plano ou nem sequer é considerado.

Três

Todos os filmes são histórias de amor, diz Wim Wenders em O estado das coisas. E a relação primeira com o cinema é de paixão. O encontro com a tela e suas imagens dificilmente é significável senão como encantamento. Não responde às necessidades básicas da vida, não é essencial à sobrevivência, pode ser considerado dispensável ao cotidiano dos homens... Entretanto, encontrá-la, ser tocado por suas imagens, por esse tempo que dura, pelo movimento em transformação que apresenta nos coloca na condição do homem que busca a mulher nas estepes siberianas: você me olhou, e agora, o que fazer com isso? O que fazer com essa perturbação do corpo, com essa desordem sensório-motora, com essa abundância de perceptos e de afectos que o afetam? E não se trata, nessa pergunta, de compreender nem de explicar, mas sim de saber como dispor-se ao encontro com seus ritmos, suas velocidades, suas variedades, seus fluxos, pois é na afetação que se produz nesse encontro que o corpo, tomado por essas forças que lhe chegam sem que delas tenha controle, é forçado a pensar. Um pensar que só é possível no próprio afetar-se, no habitar a diferença que se produz nesse encontro corpo-imagens. Pois a força de um filme não está na tela nem no olho de quem o vê; está no entre.

Zero

No encontro, a educação é do olhar; no encontro, o que pulsa é a possibilidade de pensar; no encontro, o que o sustenta é uma ética. Não se trata de “qual cinema” colocar na escola, mas “como” colocar o cinema na escola.
_______________________________________________
A referência, aqui, é ao filme Euphoria, de Ivan Vyrypayev. Produção russa de 2006, o filme é um poema audiovisual que tem como protagonista as estepes siberianas. Um homem e uma mulher saem em louca corrida pelas estepes, movidos por uma urgência que não podem nomear.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Da imbecilidade

Não temo a inteligência humana. Já a imbecilidade humana me aterroriza. Se a inteligência não constitui uma ameaça, por suportar o diálogo e a crítica, a imbecilidade é destrutiva, por supor-se verdadeira. A imbecilidade é arrogante, a inteligência é humilde. Por isso a inteligência avança, revê seus princípios, se revitaliza a cada novo saber que encontra. E a imbecilidade, com suas certezas, vê em qualquer avanço uma ameaça, em qualquer novo saber a possibilidade de deslocar-se de sua certeza. Ninguém mais desejoso de segurança que um imbecil.
Quem adere à verdade, ou busca ansiosamente uma? Em contrapartida, quem transita pelos discursos do mundo, os frequenta e aprende a rir deles? A inteligência ri, como princípio, não daquele que busca saber, e sim do que busca desesperadamente instituir-se ou valer-se do instituído para legitimar-se. O homem inteligente é sempre um clown entre sizudos doutores. E é bom que seja visto assim.
Contrapartida de meu terror (e sua justificativa):
Nada aterroriza mais a imbecilidade que a inteligência humana. Que ela seja identificada a uma certa loucura, a uma certa incipiência, para não ser rapidamente eliminada, chega a ser uma estratégia, não só de sobrevivência, mas de construção de territórios mais ou menos viáveis, embora sempre finitos. A imbecilidade pretende-se eterna, a inteligência sabe-se provisória. A primeira adere, a segunda não cessa de descolar-se de si mesma.

Dos seguidores

Jamais se demande de um criador que ele seja “iano”.. Freud jamais foi freudiano, Lacan jamais foi lacaniano... (embora pareça haver um equívoco em pretender-se “freudiano” para legitimar-se). Reich jamais foi reichiano, embora tenha produzido, da mesma maneira que seus pares antagonistas, uma infinidade de “ianos” que reivindicam serem mais fiéis ao mestre que os outros (ou que ele mesmo), o que vale dizer, mais obsessivamente reprodutores que o próprio mestre poderia ter sido de si mesmo. Não se é seguidor de si mesmo; um homem não pode, sob o risco de perder-se, seguir sua própria sombra. Lacan, por sinal, sempre foi muito claro na fala aos seus “discípulos”, jamais se recusando a chamá-los de imbecis por serem tão-somente seus seguidores. Daí que o “estilo lacaniano”, essa retórica tão valorizada pelos que fizeram e fazem escola em torno dele, sempre foi recusado por Lacan, pelo menos em sua fala pública: sua incitação sempre foi para que aqueles contaminados por seu pensamento construíssem seu próprio estilo. Mas ousar isso, essa “traição”, quem há de?
Trata-se menos de uma incapacidade e mais de um temor que incapacita. Criar, avançar, falar o que não foi dito da mesma maneira, inventar e inventar-se em uma lingua, implica fazer-se solitário, irremediavelmente solitário. O que não quer dizer “sozinho”, mas sim situado nessa irredutível diferença que só pode construir aliados, estabelecer conversações, mas que não se reduz, jamais, à ilusão de compor somatórias com o outro sem alterar-se nessa composição (não há composição que não implique o alterar-se). Implica, também, estar fora das querelas que opõem pensamentos e escolas por uma absoluta necessidade de pertencer a algum lugar reconhecido como a melhor igreja do momento. A solidão implica uma despreocupação quanto a legitimar-se como único, como absoluto, como “melhor que”; não se fazer porta-voz de nada que não seja si-mesmo; saber-se muitos mas só falar por si mesmo, ser soberano na própria voz, com todos os riscos que esse falar implica; o mais óbvio, o de não encontrar superfícies de aderência e ouvintes encantados com sua fala (ou, pior, de só encontrar ouvintes encantados com sua fala).
Risco que é, sempre, uma ilusão.. A fala fascinante fascina, em primeiro lugar, a si mesma. Talvez só a si mesma. Fascinar o outro é o que a inscreve na intencionalidade de todas as seduções. Afetar sem jamais ser afetado, sonho de Don Juan, de Valmont, sonho dos líderes que se cristalizam como tal. Não se trata de buscar ouvintes – na aspiração de sermos sempre os mesmos, qualquer que seja o lugar em que estejamos, essa ignorância do outro a que alguns costumam chamar “autenticidade” – e, sim, interlocutores e intercessores. Ter um interlocutor/intercessor – o que é raro, nos embates de narcisismos – é o mais precioso bem para nosso pensar (mesmo porque sem interlocutor/intercessor não há pensamento vivo). Interlocutor/intercessor é aquele que me afeta e se afeta dando novos rumos ao pensar, que faz do pensamento um devir. É aquele com quem se produz o que não se pode produzir sozinho e que não se produziria da mesma forma senão com ele. Pensamentos que, desejantes, se potencializam a cada nova conexão, a cada novo encontro.

terça-feira, 13 de abril de 2010

O mais profundo é a pele, diz Valery

[este é um texto de 1995; ontem comentava sobre ele, resolvi atualiza-lo aqui]

Um afeto tão delicado...


Passo várias vezes por você. Encontros circunstanciais: eu a cumprimento, trocamos uma ou outra palavra. Nada mais. Isso dura. Há o fato de freqüentarmos o mesmo espaço, de nosso tempo, às vezes, coincidir. Chegamos a ficar lado a lado uma ou outra vez, cada um ocupado com as próprias ações.
Como isso se altera? É difícil precisar o momento. Um encontro fora das referências cotidianas. Um momento em que estamos menos absortos. Não importa. Um dia trocamos palavras um pouco mais prolongadamente, nos olhamos um pouco mais demoradamente. Há até um sorriso mais extenso, a um comentário que parte de um dos dois. Uma proximidade que permite uma apreensão mais fina de nossos contornos. Alguns dizeres que se encontram com outros dizeres, que remetem a uma outra referência. Talvez uma coincidência de gosto, tal música, tal filme, tal texto lido com uma mesma intensidade.
O que sei: nesse momento, não localizável precisamente, um rosto se desenha em meu espírito. Um rosto que, quando a encontro, reconheço nas suas linhas ainda tênues como ocupado por uma inespecífica familiaridade. Algum brilho que não sei de onde se manifesta. Um viço, um prazer, uma alegria atravessando esses momentos em que o rosto torna-se presente.

O dizível talvez só seja significável como uma diferença. Não posso dizer que o amor (o que chamamos de) começa aí, como somatória de gestos que fazem com que depositemos, um no outro, um certo sentido de felicidade. Uma certeza. Um charme. Pois nada me autoriza dizer que isso resulta de uma somatória, que se compõe desses vários encontros tomados na sua seqüência, como se a familiaridade e o reconhecimento fossem efeito de uma cena que, por se repetir, permite uma proximidade "natural" (embora seja assim que muitas vezes se rememora um "conhecimento": como algo que progride). O que tenho: um "eis aí".
Gestos compõem linhas e planos num fora, desenham a geografia de um corpo que, por se desenhar desses gestos, reconheço como singular. Mais: essa geografia se desenha sobre um corpo que até então não significava isso, enquanto alguma coisa capaz de me mover, e ganha sentido à medida que meus gestos, indo na sua direção, o apreendem e lhe dão e (ao mesmo tempo) lhe descobrem a forma. Isso é simultâneo. O acontecimento abre um devir.
Algo que se realiza fora, entre. Um plano de consistência. Uma vibração. Aí, os corpos: superfícies de reverberação.

Um laço tão íntimo...

Não posso ainda dizer: você é única. Nem você, nesse momento em que estamos próximos, pode me dizer, você é único. Ao contrário, somos muitos. Mas basta que nos olhemos e, iludidos na vã promessa, comecemos a nos dizer a única, o único, para que nossos corpos percam sua superfície, para que nossos olhos simulem mais além. E quando a encontro, não a olho no seu movimento de chegar, eu a busco antes, na minha espera, na possibilidade de você não vir, esse sempre possível desencanto. Quando a encontro, não a olho mais. Eu a vejo antes, faço de você a mesma, busco fazê-la coincidir com meu olhar. No que você me falta.
Começo a chamar isso de amor. E a esperar que você chame isso de amor. O que acontece.
Tudo parece bom. Tudo parece certo. Um estado feliz que se prolonga. Chamo de tremor o que um dia atravessou meu corpo, iluminando-o de não sei quê. Insisto em chamar de incerteza o que me tomava como um vento indiscernível. Pouco mais que uma brisa. Ou menos...
É quando percebo: esse vento, não o sinto mais. Mas insisto: eu o troquei por algo mais profundo, por essa possibilidade de olhá-la e conhecê-la nos mínimos gestos, de antecipar-lhe as respostas, e pelos olhares cifrados que aprendemos a trocar. Tão íntimos... E isso não me alegra.
Fazemos de nossa fala a contínua evocação do momento em que ainda éramos estranhos. Nos acostumamos a rir, gozosos, do que escolhemos chamar de primeiras vacilações. E criamos histórias, inventando um tempo possível em que eu a olhava sem saber como chegar, e de você que esperava isso... Ou o contrário, tanto faz. São histórias de embalar desejos e construir o tempo.
Às vezes trocamos fantasias. Brincamos que somos estranhos, que estamos nos conhecendo agora, e você me olha dissimulada, eu brinco de macho pronto para o ataque, você de fêmea em fuga. A brincadeira dura, se prolonga, sabemos onde ela irá terminar.
Às vezes brigamos. Invocamos a memória, construímos nossas falas sobre faltas e deveres.
Às vezes ficamos quietos. Nem um nem outro está ali. Nem um nem outro pergunta onde está. Não estar basta.
Demoro nas ruas. Você também. Nada acontece. Alguns rostos se desenham aqui e ali. Mas desaparecem. Às vezes é uma leve brisa, que me faz, sem pensar, puxar um pouco o casaco, evitando olhar à volta. Apresso-me, compro flores, estou sempre em cansado retorno.

Um amor tão profundo...

Estamos sentados a uma mesa, você absorta em suas questões, eu nas minhas. Quase não nos olhamos, quase não falamos. Peço desculpas se algum ruído que eu faça a perturba. Desculpas que vêm quase por dever.
Um dia, talvez aconteça que, nesse estar distantes na proximidade, nos incomodemos além dos estares cotidianos. Pode ser que um de nós se dirija à janela, encontre a cidade reduzida a puros pontos luminosos e, sem dizer nada, recue até a porta, abrindo-a devagar e silenciosamente. E parta, mesmo que por um quase imperceptível afeto. Será um começo.

domingo, 24 de maio de 2009

Afetos

É inesperadamente que me deparo com um olhar inimigo. Um encontro que surpreende os dois. Eu não a esperava ali, embora o espaço nos seja comum. Não àquela hora. Não naquele ponto de passagem. Há uma surpresa que nos atravessa, há mesmo um movimento – sutil – que vacila em nossos corpos simulando uma aproximação. Rapidamente nossos olhares se desviam. Posso dizer que meu olhar dura um pouco mais, pois eu a vejo dirigir a cabeça na direção contrária à que estou, em movimento ascendente. Empina o nariz, enquanto a boca se curva para baixo. Expressão de um ressentimento que dura. Quantos anos? Três, talvez quatro. Não suficientes para desfazer as cristalizações que determinaram nosso afastamento. Não posso acusá-la, pois em mim esse tempo também se prolonga, já que não faço esforço algum para alterar o movimento que desenha em seu corpo o gesto dessa mágoa que ainda o sustenta nesse inesperado encontro. Deixo-a ir.

Há outro momento, com outra pessoa. Com esta não há ruptura; permanecemos na proximidade. Duramos em nossos cristais, indefinidamente. Alternamos momentos leves com respostas duras. Há uma fragilidade que nos sustenta de alguma maneira. Uma fragilidade, não um laço frágil. Ao contrário, são duros e persistentes esses laços. Duramos. O ressentimento é vivido como infinito, construído de silêncios, queixas, gestos contidos e uma certa resignação. Pergunto-me, o que nos impede de testar nossos limites até alcançarmos outras margens? Experimentarmos uma ausência, por que não? Não sei. O que sei é que isso que nos une – essa paixão em suspensão – nos despotencializa.

Duas formas de encontro que não evitam, entretanto, que entre um e outro aconteçam encontros mais generosos. Se nos extremos estão os gestos inimigos, absolutizados, há muitos outros, cotidianos, que não chegam a confluir para um ponto específico, simplesmente acontecem, se prolongam, se modificam. São também durações, mas de outra qualidade. São laços, não necessariamente frágeis, mas que aparentemente não se comprometem a ponto de se tornarem exigentes de um depois. Nesses encontros, o tempo é sempre outro. Ele escorre, flui. Às vezes não me dou conta de quanto ele dura, da flutuação em que sua velocidade varia.

Mas não só isso. No momento em que os encontros acontecem, são múltiplas e diversas as passagens de força entre um e outro. Fruição do pensamento, estados afetivos que permitem o riso, o ligeiro, o intenso, o “sério”, o confessional... Estados de alma e estados de mundo são lugares dados ao trânsito... Interrompido o acontecimento, há o sentimento de que algo se potencializou, de que tudo continua, não necessariamente da mesma maneira. Esses laços, cuja condição parece ser a fragilidade, renovam-se em outros encontros, sem que o hiato angustie qualquer espera. Eles acontecem, isso é tudo. Permanecem, variáveis, ao longo dos anos, sem que percam sua força. Eles são.

______________________________

Imagem: preparação das peças da exposição Contidas regras - era dos "estados de violência" (2008), de Rogéria Maciel Meira, cujo tema é a violência do homem contemporâneo e a busca de saídas para combater seu crescimento.

terça-feira, 25 de março de 2008

Triângulos

A emergência de um terceiro no casal que constituímos com outra pessoa nos ameaça com o risco da perda, isso todos sabemos... Mas o que, efetivamente, estamos perdendo? Claro, aquele que amamos (às vezes não tanto mais), seu afeto (às vezes não tão intenso), sua presença (nem sempre tão presente)... Certamente, perdemos, muito mais, nossa referência, nossa composição, nosso corpo/alma que aprendeu a existir em relação com essa pessoa que amamos (ou que supomos amar) e que às vezes nem sequer consegue respirar sem ela, tão indistintos nos tornamos... Perdemos nosso corpo ao perder o outro corpo que nos dá essa dimensão do que somos... perdemos nossa suficiência, nosso território até então habitável. E tudo porque um terceiro emergiu nessa vida idílica que é tanto vivida como sonhada (às vezes mais sonhada que vivida).
O outro, o invasor que se torna alvo é, então, em todos os sentidos, uma ameaça à nossa integridade (mesmo que seja só uma pequena integridade). E ele é ameaça por que, provavelmente, conseguiu provocar nesse outro (amado), que nos constitui, mais alegrias que nós próprios conseguimos produzir (ou que conseguimos ter com ele). Eles se compõem melhor, é uma alegria maior, um prazer maior... É, enfim, a evidência de que não somos bastantes para essa vida a dois sonhada.
Quando estamos com alguém, criamos alguns hábitos, tanto os atravessados por acontecimentos intensos que nos alegram como aqueles que, por nos entristecerem, preferimos ignorar. Afinal, que relação não tem seus momentos alegres alternando com os tristes? Os tristes nos distanciam, nos calam, com freqüência deixamos passar (afinal, há o medo de maior distância se cobramos, se exigimos, se trazemos à baila o desconforto... são muitos os riscos...). Mas, bem ou mal, temos lá aquele outro ao nosso lado, aquele corpo que nos aquece quando sentimos frio... Tudo vai bem, até que aparece um terceiro que nos retira desse conforto (que pode ter se tornado já um tanto morno). E de repente aquela nossa pessoa querida se mostra animada de outra maneira. E não é por nós. Alguém a alegra mais que nós!!! Sinal de que nossos laços não eram tão fortes assim (rica, essa nossa linguagem: o que nos anima e nos liga e nos compõe designa também o que nos prende). E quem expôs essa evidência foi um terceiro que nem sequer conhecemos. Como não odiá-lo? Não fosse ele, nosso mundo perfeito e cômodo continuaria.
Partimos, então, para o ataque ao terceiro que nos desloca: que tal desqualificá-lo? Essa é uma estratégia, principalmente quando não o conhecemos, mas podemos imaginá-lo. Que tal ameaçá-lo, infernizá-lo, perturbar-lhe a alma... talvez ele desista. Tudo isso é mais fácil do que perguntarmos por nossas próprias composições com nossa "cara metade"... por aqueles estados de alma que, de há muito, já não vivemos, não experimentamos em sua companhia. Isso vale também para o ciumento obsessivo, que nem sequer precisa da existência do terceiro para sofrer. Só sua possibilidade é já um tormento. Ele se torna, então, um atormentador distanciado. Vigia tudo, está sempre atento ao menor gesto suspeito ("que alegria é essa em sua cara, hein?". Aquele que faz essa pergunta sabe que essa alegria não é com nem por ele, já que, vigilante, nunca está junto, de corpo inteiro com o vigiado.
Dizem tanto que o ciúme é o tempero da paixão ou do amor que é bom verificarmos como esse tempero potencializa (como o ajinomoto dos orientais...) o sabor amoroso ou o excede. Se é impossível evitar o tempero, é bom perguntar pelo que ele nos ensina.
O ciúme é um afeto triste. Seja ele imaginário, seja ele produzido por um outro em nosso caminho, ele é via do ódio (que eu chamo de "alegria dos que são tristes"). O estado amoroso, em sua intensidade e sua incerteza é tanto o desejo da própria alegria como da alegria do outro. É um canto afirmativo: existimos, podemos, consistimos. Se estamos com alguém, e nos compomos alegremente com ele, tornamo-nos outro, um outro ser realmente mais belo e forte do que quando sozinhos. Amar é tanto a realização da vida como seu conhecimento. O que quer que nos separe disso é tanto a tristeza da vida como sua ignorância. Só amamos na plena potência de existir, só conhecemos na plena potência de pensar. O que quer que nos separe da vida (e de nós, e do outro) nos fragiliza, nos anuncia a insuficiência de ser. Nossa impossibilidade.
Então, que aprendamos com esses afetos, alegres ou tristes, que nos movem o querer. Sem experimentá-los, não saberemos como e o que podemos ser; experimentando-os, aprendemos como ser, criamos nossos contornos. E esse outro que nos surge, repentino, e nos alegra (ou às vezes entristece), que seja nossa via régia, nosso bem, nossa força. Só assim toda forma de amor vale a pena...
Para concluir (provisoriamente): a emergência de um terceiro em uma relação pode ser o contrário do sofrimento: pode ser o momento de olharmos para nossos estares com a pessoa que dizemos amar. Pode ser o momento de nossa máxima alterabilidade, da descoberta de nossas melhores forças. De nosso melhor encontro. E, por que não, de nos tornarmos gratos ao que aparece para nos perturbar em nossas plácidas certezas. E se "perdemos", que a perda nos ensine a ser mais sensíveis às intensidades do que até então pudemos ser.

______________________________

Imagem: fotograma do filme
As cinzas de deus, com Cia de Teatro Físico Zikzira e direção de André Semenza.

terça-feira, 18 de março de 2008

Escrever...


Prescreve o bom senso (com o qual a academia caminha em acordo) que só devemos escrever quando temos algo a dizer (não necessariamente algo original, mas fundamentado). Que não devemos nos apressar a escrever, pois a escrita demanda uma longa preparação. Uma preparação que passa por muitos modos de organização. Primeiro, criar os sistemas de referência; encontrar os autores, os saberes, o método, o ordenador simbólico que irá funcionar como uma autorização capaz de conferir ao nosso dito uma espécie de validação, uma certificação de origem. Encontradas essas balizas, passa-se para o plano. Não aquele que, em sua imanência, constitui um território habitável, mas o que antecipa uma regra para a depositação de nossos saberes, ainda que mínimos. Desenhado o plano, que inclui o método (nem isso, basta uma metodologia, de preferência uma escolhida entre as disponíveis nos manuais...), passa-se aos esboços de escrita. Esses esboços, claro, não caminham por si mesmos, devem passar pelo clivo de um terceiro, não um qualquer leitor, mas aquele autorizado, competente para avaliar a pertinência (com todos os sistemas de referência devidamente codificados) da escrita... Essa escrita, entretanto, não me encanta, nem é essa minha experiência de escrita. Só escrevo, só concebo algo a escrever quando não tenho, ao começar, o que dizer... A escrita do bom senso, invariavelmente, me paralisa. Não tenho o que dizer quando o que me convoca está nas alturas. Quando, o que me convoca, são as alturas.
Gosto de pensar que, ao escrever, nem sempre sabemos bem o que estamos fazendo ou dizendo. Há sempre um texto que se escreve ali onde algo escrevemos... Pois há (é necessário que) uma certa inocência na escrita, principalmente naquela que se faz fora das regras formais do bem-dizer acadêmico. É, aliás, essa inocência que confere ao texto um certo frescor, uma certa alegria, um certo inacabamento necessário para que ele se sustente. Um incitamento. Uma potência... Nada mais triste que um texto professoral, de alguém "que sabe" e se coloca na posição de expor seu saber a "quem não sabe". Textos dados de antemão...
Gosto desses textos que avançam sobre suas próprias incertezas, que fazem de seu inacabamento a possibilidade de continuarem. Eles são um modo de persistência... persistem em si mesmos, fazem-se lampejos, caminham intempestivos, arrastando tudo o que encontram pelo caminho, os portos, os sentidos, os nortes, prenhes de seu próprio excesso. Um excesso que é sua velocidade, sua parada repentina, sua alteração de ritmo. Pois tudo o que temos é isso, tempos, velocidades, afetos... Gosto desses textos que não se dão facilmente à compreensão, mas que entretanto ali estão, abertos, disponíveis a um leitor com o qual se construírem... Gosto desses textos nos quais tropeçamos, que nos fazem claudicar junto com eles, textos nos quais nos perdemos... ao mesmo tempo em que nos puxam, nos arrastam, nos impedem a parada, nos devolvem à deriva a cada vez que supomos ter conseguido uma ancoragem.
Quando leio, penso que não devo perguntar: "o que o autor quer dizer", pois estou já na imanência do dito, dos fluxos que arrastam as palavras, as frases, os sentidos. Estou na música, e se encontro uma paisagem, desejo que seja dessas que se desenham para rapidamente se dissolverem em outras paisagens. Esses são os textos com potência de me mover, de me pôr em movimento com eles...
Gosto desses textos que me convidam a inventar meus caminhos, textos que multiplicam meus próprios dizeres, minha própria escrita. É neles que encontro o que pensar, é com eles que meu corpo é forçado a pensar...

10.03.2008

______________________________

Imagem: o magnífico Escher. Drawing Hands, 1948.