sexta-feira, 30 de julho de 2010

Isso que me olha

[...] a gente não gostava de explicar as imagens porque explicar afasta as falas da imaginação (Manoel de Barros)

Um

Um homem procura uma mulher pelas estepes siberianas, recusando todas as recomendações de seu amigo quanto ao risco de sua empreitada. Sim, a mulher é casada, sim, tem uma filha, sim, sim, o marido é ciumento, esse encontro que ele busca, que o obceca, pode matá-lo. Mas não há apelo à razão que possa deslocá-lo de seu movimento e sua fissura. É preciso, é urgente falar com ela. Sua aflição o arrasta, carrega o que quer que encontre em seu caminho, as dores, as ânsias, os olhos, ah, sim, todos os olhos que buscam capturá-lo, pará-lo por um instante que seja, reconhecê-lo no que o move.
Seu movimento, que ignora qualquer barreira, encontra outros movimentos, outras ânsias, outras perambulações. Movimentos que entretanto não lhe dão continência. A mulher, um ponto vermelho na paisagem dourada, um ponto que o ignora e que ele busca, está lá, não exatamente à espera, mas visível sob a luz intensa que a faz emergir única, singular, como pólo irresistível de atração. O que os separa, uma brecha, uma fissura no terreno, marcando o lugar de onde ele fala, interpela, demanda, e o da mulher e a filha que ela chama, sustentando-se numa quase indiferença que o incita, que o provoca. Um corpo que existe à sua revelia, embora só tenha existência porque, de seu lugar, de seu desejo, ele o olha e o interpela. E esta é a questão que ele lança, insistente: estivemos juntos numa festa, lembra-se?, e você me olhou. E agora, o que fazer com isso? O que fazer disso, desse acontecimento singular, desse encontro de olhares? O que fazer dessa captura? A pergunta ansiosa do homem encontra a plácida resposta da mulher que ao mesmo tempo o evita e o atrai: não sei...

Dois

A escola descobre o cinema. Essa descoberta assume várias formas. A mais comum e prosaica é o uso do cinema como dispositivo temático. Exibe-se um filme como suporte para algo que se pretende apresentar aos alunos. São abundantes hoje as indicações de filmes para se trabalhar isto ou aquilo a partir de seu conteúdo. Trabalha-se, assim, saúde, história, geografia, ecologia, ética, relações humanas com o recurso aos exemplos. Este é um uso moral do cinema, pois ele supõe sempre a existência de um modelo, de uma referência pré-dada em relação ao qual algum ajuste se propõe, tendo como resultado esperado e final uma compreensão do tema proposto. O filme como narrativa, como texto, está em segundo plano ou nem sequer é considerado.

Três

Todos os filmes são histórias de amor, diz Wim Wenders em O estado das coisas. E a relação primeira com o cinema é de paixão. O encontro com a tela e suas imagens dificilmente é significável senão como encantamento. Não responde às necessidades básicas da vida, não é essencial à sobrevivência, pode ser considerado dispensável ao cotidiano dos homens... Entretanto, encontrá-la, ser tocado por suas imagens, por esse tempo que dura, pelo movimento em transformação que apresenta nos coloca na condição do homem que busca a mulher nas estepes siberianas: você me olhou, e agora, o que fazer com isso? O que fazer com essa perturbação do corpo, com essa desordem sensório-motora, com essa abundância de perceptos e de afectos que o afetam? E não se trata, nessa pergunta, de compreender nem de explicar, mas sim de saber como dispor-se ao encontro com seus ritmos, suas velocidades, suas variedades, seus fluxos, pois é na afetação que se produz nesse encontro que o corpo, tomado por essas forças que lhe chegam sem que delas tenha controle, é forçado a pensar. Um pensar que só é possível no próprio afetar-se, no habitar a diferença que se produz nesse encontro corpo-imagens. Pois a força de um filme não está na tela nem no olho de quem o vê; está no entre.

Zero

No encontro, a educação é do olhar; no encontro, o que pulsa é a possibilidade de pensar; no encontro, o que o sustenta é uma ética. Não se trata de “qual cinema” colocar na escola, mas “como” colocar o cinema na escola.
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A referência, aqui, é ao filme Euphoria, de Ivan Vyrypayev. Produção russa de 2006, o filme é um poema audiovisual que tem como protagonista as estepes siberianas. Um homem e uma mulher saem em louca corrida pelas estepes, movidos por uma urgência que não podem nomear.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Da imbecilidade

Não temo a inteligência humana. Já a imbecilidade humana me aterroriza. Se a inteligência não constitui uma ameaça, por suportar o diálogo e a crítica, a imbecilidade é destrutiva, por supor-se verdadeira. A imbecilidade é arrogante, a inteligência é humilde. Por isso a inteligência avança, revê seus princípios, se revitaliza a cada novo saber que encontra. E a imbecilidade, com suas certezas, vê em qualquer avanço uma ameaça, em qualquer novo saber a possibilidade de deslocar-se de sua certeza. Ninguém mais desejoso de segurança que um imbecil.
Quem adere à verdade, ou busca ansiosamente uma? Em contrapartida, quem transita pelos discursos do mundo, os frequenta e aprende a rir deles? A inteligência ri, como princípio, não daquele que busca saber, e sim do que busca desesperadamente instituir-se ou valer-se do instituído para legitimar-se. O homem inteligente é sempre um clown entre sizudos doutores. E é bom que seja visto assim.
Contrapartida de meu terror (e sua justificativa):
Nada aterroriza mais a imbecilidade que a inteligência humana. Que ela seja identificada a uma certa loucura, a uma certa incipiência, para não ser rapidamente eliminada, chega a ser uma estratégia, não só de sobrevivência, mas de construção de territórios mais ou menos viáveis, embora sempre finitos. A imbecilidade pretende-se eterna, a inteligência sabe-se provisória. A primeira adere, a segunda não cessa de descolar-se de si mesma.

Dos seguidores

Jamais se demande de um criador que ele seja “iano”.. Freud jamais foi freudiano, Lacan jamais foi lacaniano... (embora pareça haver um equívoco em pretender-se “freudiano” para legitimar-se). Reich jamais foi reichiano, embora tenha produzido, da mesma maneira que seus pares antagonistas, uma infinidade de “ianos” que reivindicam serem mais fiéis ao mestre que os outros (ou que ele mesmo), o que vale dizer, mais obsessivamente reprodutores que o próprio mestre poderia ter sido de si mesmo. Não se é seguidor de si mesmo; um homem não pode, sob o risco de perder-se, seguir sua própria sombra. Lacan, por sinal, sempre foi muito claro na fala aos seus “discípulos”, jamais se recusando a chamá-los de imbecis por serem tão-somente seus seguidores. Daí que o “estilo lacaniano”, essa retórica tão valorizada pelos que fizeram e fazem escola em torno dele, sempre foi recusado por Lacan, pelo menos em sua fala pública: sua incitação sempre foi para que aqueles contaminados por seu pensamento construíssem seu próprio estilo. Mas ousar isso, essa “traição”, quem há de?
Trata-se menos de uma incapacidade e mais de um temor que incapacita. Criar, avançar, falar o que não foi dito da mesma maneira, inventar e inventar-se em uma lingua, implica fazer-se solitário, irremediavelmente solitário. O que não quer dizer “sozinho”, mas sim situado nessa irredutível diferença que só pode construir aliados, estabelecer conversações, mas que não se reduz, jamais, à ilusão de compor somatórias com o outro sem alterar-se nessa composição (não há composição que não implique o alterar-se). Implica, também, estar fora das querelas que opõem pensamentos e escolas por uma absoluta necessidade de pertencer a algum lugar reconhecido como a melhor igreja do momento. A solidão implica uma despreocupação quanto a legitimar-se como único, como absoluto, como “melhor que”; não se fazer porta-voz de nada que não seja si-mesmo; saber-se muitos mas só falar por si mesmo, ser soberano na própria voz, com todos os riscos que esse falar implica; o mais óbvio, o de não encontrar superfícies de aderência e ouvintes encantados com sua fala (ou, pior, de só encontrar ouvintes encantados com sua fala).
Risco que é, sempre, uma ilusão.. A fala fascinante fascina, em primeiro lugar, a si mesma. Talvez só a si mesma. Fascinar o outro é o que a inscreve na intencionalidade de todas as seduções. Afetar sem jamais ser afetado, sonho de Don Juan, de Valmont, sonho dos líderes que se cristalizam como tal. Não se trata de buscar ouvintes – na aspiração de sermos sempre os mesmos, qualquer que seja o lugar em que estejamos, essa ignorância do outro a que alguns costumam chamar “autenticidade” – e, sim, interlocutores e intercessores. Ter um interlocutor/intercessor – o que é raro, nos embates de narcisismos – é o mais precioso bem para nosso pensar (mesmo porque sem interlocutor/intercessor não há pensamento vivo). Interlocutor/intercessor é aquele que me afeta e se afeta dando novos rumos ao pensar, que faz do pensamento um devir. É aquele com quem se produz o que não se pode produzir sozinho e que não se produziria da mesma forma senão com ele. Pensamentos que, desejantes, se potencializam a cada nova conexão, a cada novo encontro.

terça-feira, 13 de abril de 2010

O mais profundo é a pele, diz Valery

[este é um texto de 1995; ontem comentava sobre ele, resolvi atualiza-lo aqui]

Um afeto tão delicado...


Passo várias vezes por você. Encontros circunstanciais: eu a cumprimento, trocamos uma ou outra palavra. Nada mais. Isso dura. Há o fato de freqüentarmos o mesmo espaço, de nosso tempo, às vezes, coincidir. Chegamos a ficar lado a lado uma ou outra vez, cada um ocupado com as próprias ações.
Como isso se altera? É difícil precisar o momento. Um encontro fora das referências cotidianas. Um momento em que estamos menos absortos. Não importa. Um dia trocamos palavras um pouco mais prolongadamente, nos olhamos um pouco mais demoradamente. Há até um sorriso mais extenso, a um comentário que parte de um dos dois. Uma proximidade que permite uma apreensão mais fina de nossos contornos. Alguns dizeres que se encontram com outros dizeres, que remetem a uma outra referência. Talvez uma coincidência de gosto, tal música, tal filme, tal texto lido com uma mesma intensidade.
O que sei: nesse momento, não localizável precisamente, um rosto se desenha em meu espírito. Um rosto que, quando a encontro, reconheço nas suas linhas ainda tênues como ocupado por uma inespecífica familiaridade. Algum brilho que não sei de onde se manifesta. Um viço, um prazer, uma alegria atravessando esses momentos em que o rosto torna-se presente.

O dizível talvez só seja significável como uma diferença. Não posso dizer que o amor (o que chamamos de) começa aí, como somatória de gestos que fazem com que depositemos, um no outro, um certo sentido de felicidade. Uma certeza. Um charme. Pois nada me autoriza dizer que isso resulta de uma somatória, que se compõe desses vários encontros tomados na sua seqüência, como se a familiaridade e o reconhecimento fossem efeito de uma cena que, por se repetir, permite uma proximidade "natural" (embora seja assim que muitas vezes se rememora um "conhecimento": como algo que progride). O que tenho: um "eis aí".
Gestos compõem linhas e planos num fora, desenham a geografia de um corpo que, por se desenhar desses gestos, reconheço como singular. Mais: essa geografia se desenha sobre um corpo que até então não significava isso, enquanto alguma coisa capaz de me mover, e ganha sentido à medida que meus gestos, indo na sua direção, o apreendem e lhe dão e (ao mesmo tempo) lhe descobrem a forma. Isso é simultâneo. O acontecimento abre um devir.
Algo que se realiza fora, entre. Um plano de consistência. Uma vibração. Aí, os corpos: superfícies de reverberação.

Um laço tão íntimo...

Não posso ainda dizer: você é única. Nem você, nesse momento em que estamos próximos, pode me dizer, você é único. Ao contrário, somos muitos. Mas basta que nos olhemos e, iludidos na vã promessa, comecemos a nos dizer a única, o único, para que nossos corpos percam sua superfície, para que nossos olhos simulem mais além. E quando a encontro, não a olho no seu movimento de chegar, eu a busco antes, na minha espera, na possibilidade de você não vir, esse sempre possível desencanto. Quando a encontro, não a olho mais. Eu a vejo antes, faço de você a mesma, busco fazê-la coincidir com meu olhar. No que você me falta.
Começo a chamar isso de amor. E a esperar que você chame isso de amor. O que acontece.
Tudo parece bom. Tudo parece certo. Um estado feliz que se prolonga. Chamo de tremor o que um dia atravessou meu corpo, iluminando-o de não sei quê. Insisto em chamar de incerteza o que me tomava como um vento indiscernível. Pouco mais que uma brisa. Ou menos...
É quando percebo: esse vento, não o sinto mais. Mas insisto: eu o troquei por algo mais profundo, por essa possibilidade de olhá-la e conhecê-la nos mínimos gestos, de antecipar-lhe as respostas, e pelos olhares cifrados que aprendemos a trocar. Tão íntimos... E isso não me alegra.
Fazemos de nossa fala a contínua evocação do momento em que ainda éramos estranhos. Nos acostumamos a rir, gozosos, do que escolhemos chamar de primeiras vacilações. E criamos histórias, inventando um tempo possível em que eu a olhava sem saber como chegar, e de você que esperava isso... Ou o contrário, tanto faz. São histórias de embalar desejos e construir o tempo.
Às vezes trocamos fantasias. Brincamos que somos estranhos, que estamos nos conhecendo agora, e você me olha dissimulada, eu brinco de macho pronto para o ataque, você de fêmea em fuga. A brincadeira dura, se prolonga, sabemos onde ela irá terminar.
Às vezes brigamos. Invocamos a memória, construímos nossas falas sobre faltas e deveres.
Às vezes ficamos quietos. Nem um nem outro está ali. Nem um nem outro pergunta onde está. Não estar basta.
Demoro nas ruas. Você também. Nada acontece. Alguns rostos se desenham aqui e ali. Mas desaparecem. Às vezes é uma leve brisa, que me faz, sem pensar, puxar um pouco o casaco, evitando olhar à volta. Apresso-me, compro flores, estou sempre em cansado retorno.

Um amor tão profundo...

Estamos sentados a uma mesa, você absorta em suas questões, eu nas minhas. Quase não nos olhamos, quase não falamos. Peço desculpas se algum ruído que eu faça a perturba. Desculpas que vêm quase por dever.
Um dia, talvez aconteça que, nesse estar distantes na proximidade, nos incomodemos além dos estares cotidianos. Pode ser que um de nós se dirija à janela, encontre a cidade reduzida a puros pontos luminosos e, sem dizer nada, recue até a porta, abrindo-a devagar e silenciosamente. E parta, mesmo que por um quase imperceptível afeto. Será um começo.