quinta-feira, 20 de maio de 2010

Da imbecilidade

Não temo a inteligência humana. Já a imbecilidade humana me aterroriza. Se a inteligência não constitui uma ameaça, por suportar o diálogo e a crítica, a imbecilidade é destrutiva, por supor-se verdadeira. A imbecilidade é arrogante, a inteligência é humilde. Por isso a inteligência avança, revê seus princípios, se revitaliza a cada novo saber que encontra. E a imbecilidade, com suas certezas, vê em qualquer avanço uma ameaça, em qualquer novo saber a possibilidade de deslocar-se de sua certeza. Ninguém mais desejoso de segurança que um imbecil.
Quem adere à verdade, ou busca ansiosamente uma? Em contrapartida, quem transita pelos discursos do mundo, os frequenta e aprende a rir deles? A inteligência ri, como princípio, não daquele que busca saber, e sim do que busca desesperadamente instituir-se ou valer-se do instituído para legitimar-se. O homem inteligente é sempre um clown entre sizudos doutores. E é bom que seja visto assim.
Contrapartida de meu terror (e sua justificativa):
Nada aterroriza mais a imbecilidade que a inteligência humana. Que ela seja identificada a uma certa loucura, a uma certa incipiência, para não ser rapidamente eliminada, chega a ser uma estratégia, não só de sobrevivência, mas de construção de territórios mais ou menos viáveis, embora sempre finitos. A imbecilidade pretende-se eterna, a inteligência sabe-se provisória. A primeira adere, a segunda não cessa de descolar-se de si mesma.

Dos seguidores

Jamais se demande de um criador que ele seja “iano”.. Freud jamais foi freudiano, Lacan jamais foi lacaniano... (embora pareça haver um equívoco em pretender-se “freudiano” para legitimar-se). Reich jamais foi reichiano, embora tenha produzido, da mesma maneira que seus pares antagonistas, uma infinidade de “ianos” que reivindicam serem mais fiéis ao mestre que os outros (ou que ele mesmo), o que vale dizer, mais obsessivamente reprodutores que o próprio mestre poderia ter sido de si mesmo. Não se é seguidor de si mesmo; um homem não pode, sob o risco de perder-se, seguir sua própria sombra. Lacan, por sinal, sempre foi muito claro na fala aos seus “discípulos”, jamais se recusando a chamá-los de imbecis por serem tão-somente seus seguidores. Daí que o “estilo lacaniano”, essa retórica tão valorizada pelos que fizeram e fazem escola em torno dele, sempre foi recusado por Lacan, pelo menos em sua fala pública: sua incitação sempre foi para que aqueles contaminados por seu pensamento construíssem seu próprio estilo. Mas ousar isso, essa “traição”, quem há de?
Trata-se menos de uma incapacidade e mais de um temor que incapacita. Criar, avançar, falar o que não foi dito da mesma maneira, inventar e inventar-se em uma lingua, implica fazer-se solitário, irremediavelmente solitário. O que não quer dizer “sozinho”, mas sim situado nessa irredutível diferença que só pode construir aliados, estabelecer conversações, mas que não se reduz, jamais, à ilusão de compor somatórias com o outro sem alterar-se nessa composição (não há composição que não implique o alterar-se). Implica, também, estar fora das querelas que opõem pensamentos e escolas por uma absoluta necessidade de pertencer a algum lugar reconhecido como a melhor igreja do momento. A solidão implica uma despreocupação quanto a legitimar-se como único, como absoluto, como “melhor que”; não se fazer porta-voz de nada que não seja si-mesmo; saber-se muitos mas só falar por si mesmo, ser soberano na própria voz, com todos os riscos que esse falar implica; o mais óbvio, o de não encontrar superfícies de aderência e ouvintes encantados com sua fala (ou, pior, de só encontrar ouvintes encantados com sua fala).
Risco que é, sempre, uma ilusão.. A fala fascinante fascina, em primeiro lugar, a si mesma. Talvez só a si mesma. Fascinar o outro é o que a inscreve na intencionalidade de todas as seduções. Afetar sem jamais ser afetado, sonho de Don Juan, de Valmont, sonho dos líderes que se cristalizam como tal. Não se trata de buscar ouvintes – na aspiração de sermos sempre os mesmos, qualquer que seja o lugar em que estejamos, essa ignorância do outro a que alguns costumam chamar “autenticidade” – e, sim, interlocutores e intercessores. Ter um interlocutor/intercessor – o que é raro, nos embates de narcisismos – é o mais precioso bem para nosso pensar (mesmo porque sem interlocutor/intercessor não há pensamento vivo). Interlocutor/intercessor é aquele que me afeta e se afeta dando novos rumos ao pensar, que faz do pensamento um devir. É aquele com quem se produz o que não se pode produzir sozinho e que não se produziria da mesma forma senão com ele. Pensamentos que, desejantes, se potencializam a cada nova conexão, a cada novo encontro.