quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Das intensidades de Claudio Assis...


Se Amarelo Manga é um rugido pulsante nas veias do mangue recifense, que não se interrompe em nós nem mesmo quando cessam as imagens sobre a tela, Baixio das Bestas é o império do silêncio opressivo dos quadros fixos que, em cada retorno, nos dão, sintético, mínimo, estático, o tempo que não passa no vai e vem de caminhões e de corpos assujeitados na monocultura canavieira da Zona da Mata. No trabalho e no sexo, é sempre o corpo (explorado) que é dobrado num destino de fixidez mórbida, posto que sem possibilidade de singularização. Como o rugido, o silêncio dura, insiste no corpo, se faz clivagem sobre o mal-estar. Pois o cinema de Claudio Assis é isso: uma instância de superexposição do que constitui nosso mal-estar, ao qual não resistem nem mesmo as belas almas, mesmo as mais persistentes na manutenção de suas suturas protetoras.
Inevitável: esse pernambucano que é hoje um dos mais expressivos, polêmicos, radicais e vitais da nova geração de cineastas do país move paixões e amealha tanto admiradores quanto detratores. Poucos reagem com indiferença às suas imagens e à intensidade de seu estilo narrativo. Os admiradores dizem: cinema visceral; os detratores: exibicionismo, perversidade, gratuidade, desejo de chocar... pornografia, niilismo... São mais abundantes os adjetivos dos detratores do que os dos admiradores. Entende-se: quando uma obra se impõe por sua força, de pouco lhe valem os adjetivos, elogiosos ou não. O que permanece é um afeto que ora nos anima de alegria, ora nos mergulha na estupefação de um irremediável e triste desencantamento. Que não tomemos, entretanto, a alegria como expressão de uma obscura perversidade a nos roer os ossos da bela forma, nem a estupefação como manifestação de uma consciência que (inevitável) nos encaminha para uma culpa geradora de, no máximo, murros impotentes no ar. Melhor deixar que o mal-estar encontre seu tempo e sua maturação, sustentando rugidos e silêncios. Em sua negação se cava a fossa, infinita em sua escavação infinita.
O cinema de Assis, que alguns apontam como excessivo (quando não fruto de um capricho rancoroso e niilista), é, efetivo em sua visceral vitalidade, sempre alegre. Pois, assim como não é necessário ser triste para ser militante (como nos recomenda Foucault), não é necessário ser severo ou sóbrio ou ponderado quando aquilo que se combate é atroz e nos faz tremer de indignação. A alegria, essa variação para uma perfeição maior, não necessita da forma do sorriso ou da vã e estéril esperança para se afirmar. Ama mais o homem aquele que o expõe em suas fragilidades e suas mazelas do que o que o adula e lhe afaga a cabeça, compassivo (este, na realidade, odeia sem saber que odeia, confundindo, na tristeza arrogante de seu afeto, seu ódio concreto com um abstrato e difuso amor [para com o próximo...]).
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...às intensidades do espectador
Perante um filme, não se trata de interpretá-lo (o que não se faz senão com o recurso a algo externo a ele, um modelo interpretativo, por exemplo, o que implica negá-lo como obra integral, afirmando que, enquanto obra, ele não se sustenta por si), mas de perguntar o que ele nos provoca, a que ele nos força. No cinema, mergulhado na sala escura e no conforto (ou desconforto, tanto faz) de uma poltrona, o corpo se apresenta a imagens projetadas em uma tela; imagens que, em sua duração, mudam. Sabemos (mesmo que só por experiência) que só assistimos bem a um filme se suspendemos, durante nossa presença às imagens, a consciência. Isto é, se nos desocupamos de ocupar nossa mente com o que quer que seja que não o fluxo de imagens ao qual nos entregamos, pois é à condição de nos entregarmos ao fluxo das imagens que podemos fruí-las. Assim, é principalmente o corpo e sua disponibilidade às afetações que está presente perante as imagens de um filme. "Sabemos" também - ou supomos - (mesmo que só por experiência) que, só após terminado um filme nos dispomos a pensá-lo. SUPOMOS, porque teríamos de crer que o pensamento se confunde com a consciência e que, como a consciência, o pensamento é algo que ocorre somente após a experiência e conhecimento de alguma coisa, o que só é concebível àquele que não é afeito à sua ativação. Contrariamente a isso, é necessário que afirmemos que, após o filme, o que ocorre é que nos damos conta - acede à nossa consciência, nos vêm à atenção - do que se pensava em nós durante a exposição a ele, pois o pensamento está ativo ao mesmo tempo em que o corpo, perante as imagens, é por elas afetado. Para que estejamos ativos perante um filme (e, com isso, para que acompanhemos de forma compreensiva o fluxo narrativo suportado pelas imagens), é necessário, pois, pensá-lo ao mesmo tempo que ele se apresenta. Mais especificamente: é necessário que as imagens fílmicas tenham a potência de forçar o corpo a pensar.
Forçar, na medida em que nos colocamos aí numa posição paradoxal. Se pensar é uma atividade, e se a fruição do fluxo de imagens demanda um corpo em estado de relaxamento e suspensão (da consciência, que é, primeiro, consciência do corpo em estado de recepção e passividade), e que esse estado é compreendido como de um corpo receptivo/[passivo], é necessário que possamos compreender o corpo receptivo não como passivo, mas sim ativo em sua receptividade, logo, é necessário que compreendamos a recepção como uma disposição ativa. Essa disposção ativa, longe de ser da natureza do corpo (sua natureza é de passividade), implica um esforço que, no cinema, deriva das imagens, ou, mais precisamente, da relação do espectador com elas. O que é ativa, podemos dizer, é essa relação.
Isso nos leva a um outro ponto. Assistir um filme exige estarmos implicados com ele, estarmos, com o filme, constituindo, numa dimensão relacional, um par nós[espectador]-imagens. Na relação com as imagens, é sempre numa dimensão afetiva que se dá essa implicação. Afetiva, na medida em que a imagem nos afeta, sem que possamos escolher de que maneira somos por ela afetados.

[cont.]
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Imagem: um tanto óbvio, o cartaz de divulgação de Baixio das bestas, de Claudio Assis.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Da maestria

Supõe-se, quase sempre, que de tudo que um mestre deseja, o mais central é conquistar discípulos. Suposição que, se pode ser dada como óbvia, ao ser assim pensada, leva ao encobrimento de uma armadilha, das mais fatais para a própria existência do mestre. Pois se é inevitável que um mestre precise de discípulos (essa talvez primeira forma de intercessor e/ou interlocutor), já que de pouco valeriam suas palavras e seus saberes se não houvesse a quem dirigi-los, ou quem os movesse, ou quem os fizesse proliferar, a persistência do discípulo no lugar de discipulo rapidamente transforma-se na morte do mestre. Não há nobreza [e][ou] sabedoria [e][ou] firmeza de princípios [e][ou] força desejante [e][ou] possibilidade de defesa do mestre que o salve desse destino, o de ser morto ou destituído por aquele que o consagra em seu lugar de mestre.
Caminhemos atentamente. Ser morto ou destituído como mestre não é, necessariamente, um mal. Ao contrário, pois não há mal pior do que o de desejar fixar-se e perpetuar-se na posição cristalizada de uma identidade. Se assim pensarmos, veremos rapidamente que nada mais desejável para aquele que ocupa, temporariamente, o lugar de um mestre que ser morto ou destituído por seus discípulos. Afinal, de que valeria um mestre capaz unicamente de produzir (eternos) discípulos?
Quando falo, então, dos riscos do mestre, aqueles que levam a sua destruição, devo insistir que não é o discípulo que destrói o mestre, mas que a fatalidade do mestre está na persistência do discípulo enquanto discípulo.
Vejamos. O que produz o discípulo, num primeiro momento, é um certo encantamento que a palavra do mestre produz nele. Muitas vezes não se trata sequer das palavras e seu peso, seu sentido, sua potência de agenciamento, mas de um certo jeito, de uma certa maneira de articular as palavras, tais e tais gestos que geram no discípulo um olhar e uma escuta encantados, não raro fascinados. Será movido por esse estado – um charme – que o já capturado discípulo aproxima-se daquele que ele eleje como seu mestre. A partir daí, ele irá se fazer presente a cada manifestação do mestre, à espera daquela frase, daquele gesto, daquela entonação que o faz sorrir e reconhecer, no outro à sua frente, sua própria consistência, sua própria materialidade.
Isso pode se estender por muito tempo. Pode não passar disso, dessa reiteração constante que faz da presença de um a certeza da presença do outro. Se permanecer aí, a existência do mestre pouco irá se alterar. Acostumado a essas presenças fascinadas, o mestre sabe muito bem que elas são efêmeras. Um dia o discípulo fascinado se cansará, elejerá outro mestre a quem seguir e a quem fazer responsável por sua própria consistência. Mesmo assim, por menor que seja, essas fascinações oferecem um risco ao mestre. Um risco narcísico, o de se deixar encantar por essas presenças fascinadas, fazendo desse seu agora encantamento sua armadilha: conservar-se sempre o mesmo, medindo cuidadosamente as palavras e os gestos capazes de sustentá-lo nessa posição, jamais se desviando disso que supostamente assegura a sustentação desse território tão belamente constituído... como se fosse um jogo de olhos que se eterniza.
Esta é a primeira morte do mestre, esse fascínio consigo mesmo que se afirma do fascínio que produz em um outro. [cont.]


* Texto em construção, iniciado em 19 de novembro de 2007, a continuar sabe-se lá quando [nota do dia 19 de março de 2008]
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Imagem: Escher, Moebius Strip, 1963.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Fragmentos de um Corpo Nu (2002)










[MOTO CONTÍNUO]

Um, dois, três, zero
No começo, três alternativas ofereciam-se às suas limitadas reflexões. Limitadas não por incapacidade, mas por juventude. A pouca experiência, ainda, não lhe permitia altos vôos, e qualquer intento de entregar-se a uma diletante autobiografia, uma de suas aspirações, parecia-lhe ruinoso. Não ultrapassaria três páginas de uma obra que sonhava caudalosa. Tratava-se, de qualquer forma, de algo que estava além, que não dizia respeito ao que quer que pudesse dizer ou pensar de uma vida ainda tão menina. O que, entretanto, não lhe impedia a aspiração. Iniciara várias vezes a ambição do dizer bem o que, lamentavelmente, não podia conceber claramente, o que, anos mais tarde, transformara-se em uma quase obsessão. Como conceber claramente algo, se passados os anos permanecia ainda preso à mesma ambição adolescente de ter o que dizer sob uma bela forma?
Depois de muitos esforços, e tomado pelo sentimento de que a bela forma é sempre insuficiente se não tem o que levantar consigo, fazendo dele um puro risco de tornar-se um esteta do nada a consentir, abandonara, por longo tempo, e não sem frustrar-se, a aventura. Que a bela forma se resolvesse primeiro, se é que, e, para resolvê-la, que ousasse caminhar mais abaixo, que buscasse o limbo e o lodo do que se tornara indizível.
Acostumara a sentar-se nu à escrivaninha, papéis à frente, imaculadas superfícies brancas que aguardavam por alguma contaminação. Contaminar, macular, desenobrecer, esse deveria ser o impulso facilitado pela nudez. Entretanto, embora nu, eram ainda as três alternativas da juventude seu tormento. A necessidade de passar o corpo ao branco, de transmitir ao branco as produções do corpo, de manchá-lo indelevelmente de suas secreções, de romper o muro criado pelas alternativas da juventude mostravam-se vãs. O máximo que conseguia era o suor do longo tempo imóvel e os quase imperceptíveis líquidos vazantes de seu corpo marcando a cadeira. Nada na escrita, nada no papel imaculadamente branco que revelasse as indeléveis nódoas que se esmerava, inutilmente, em limpar ali onde depusera o corpo.
Tratava-se, portanto, de encarar, em primeiro lugar, as alternativas da juventude, de excedê-las, de tentar ultrapassá-las. Só depois a escrita poderia talvez se tornar seu melhor possível.
Ao olhá-las de perto, entretanto, elas pareciam desdobrar-se infinitamente, revelando muitas outras dobras. Cada uma delas uma dobra, à primeira vista facilmente desdobrável por ser só uma, mostrava-se, ao iniciar o trabalho, objeto de um esforço sem fim. Mais resistentes até que as do corpo. Com quantas dobras se compõe uma dobra? Com quantos labirintos se faz um caminho reto? Olhar de perto é amplificar e reduzir o mundo. Uma linha não é somente uma linha, mas toda uma infinidade de vacilações e ensaios, de desvios e retomadas de caminho. Em todas as direções. Multiplicidades de pontos, de idas de um a outro, de retornos... Mais que três, muito mais que esse perfeito equilíbrio que, ao apresentar-se, só faz iludir de sua perfeição.
A cada aproximação, perder-se no emaranhado de linhas e pontos e curvas e atalhos e fragmentos de percurso levando a nenhum lugar apresentava-se como sina. Buscar uma alternativa outra. Tornara-se urgente sair para a cidade, procurar desfazer-se das proximidades do corpo mergulhando nelas. Ganhar a rua, caminhar supostamente determinado traçando sua linha entre um ponto e outro. Ignorar as próprias vacilações. Ignorar tudo o que o atrai, as luzes, as sonoridades, os tantos outros corpos que passam por ele sem esforços de aproximação. Que ele também evita. Viseiras é tudo o que se pode usar no caminho pelas ruas que tecem o impreciso traçado da cidade. Não poderia ser de outra maneira, pensa ele, sem que o tempo e o próprio espaço se esgarcem. Como ele, os outros pensam provavelmente o mesmo, por que não haveriam de, se como ele agem e caminham e evitam aproximações? Corpo, tempo, espaço, com certeza esse é o primeiro três. Condição mínima. O primeiro das três alternativas, a primeira dobra da primeira alternativa, a primeira dobra da primeira dobra da primeira alternativa. O que é já é muito.
Olha o cão, que jamais passa por outro sem cheirar-lhe o rabo. Lera em algum lugar que a passagem da posição curvada sobre quatro patas para a ereta, sobre dois pés, distanciara o homem de si mesmo, de seu corpo, de sua condição animal e suas formas de reconhecimento do semelhante. Fora Freud quem dissera isso, em um de seus malditos e incômodos textos, malgrado o cuidado e a elegância da escrita. Mais. Para compreender a cultura, para perguntar pelo que nos constitui, é necessário vasculhar-lhe as origens. Ir ao chão, ao lixo, aos resíduos, ao inútil, ao desprezível. Qual a coragem?
Sob o sol, caminhando suarento envolvido pelo perfume excessivo em sua já mistura, torcendo o nariz ao passar por lugares fétidos, qual a coragem? Como alterar isso, escapando às três alternativas das belas almas?
Na juventude, éramos também três, recorda. Uma pequena comunidade adolescente, atormentados, todos, pela lisura das belas almas que deveríamos cultivar. Éramos, cada um, uma das três alternativas que se desdobravam, por sua vez, em outras três, na desdobra infinita das dobras que nos compunham. As doces armadilhas. As ineludíveis explicações buscando manter à tona, à margem das palavras, a ignorância das profundezas e superfícies do corpo. Os severos confrontos que a solidão da amizade impedia que avançassem para além do cálido limite dos atos polidos, posto que ia além da polidez, atravessada de afetos capazes de superar rivalidades. Amigos com suas diferenças às vezes grandes e pouco ameaçadoras. Mais tarde distanciamo-nos, em nossos rumos diversos, recorda ainda. Tornamo-nos também diversos, quase divergentes. Perdemo-nos das notícias, cumprindo cada um, bem ou mal, o que tinha sido sonhado antes mesmo de sermos o que poderíamos ter sido. Sem tempo para o tornar-se, cada um, outro.
Dois retornaram ao lugar de origem. É o que se sabe, no jogo das lisuras. O terceiro, o homem que caminha, com certeza não. O que não significa que deixara de cumprir seu destino. O retorno ao lugar de origem, de alguma forma, é a aceitação das alternativas, de pelo menos uma. Não retornar, não. Não uma resolução, mas impossibilidade de permanecer com qualquer uma delas.
É assim que o homem que caminha atravessa as ruas tentando manter a linha reta, atraído por todos os atalhos sem se decidir por nenhum. Nenhuma das alternativas, seu inferno. Impossibilidade do três.

O zero
Na cidade sem sombras, os caminhos pareciam límpidos. Não era a falta de clareza que impedia fossem reconhecidos. Tratava-se de outra coisa, não de reconhecer caminhos, mas de reconhecer-se neles. De jamais saber se por ali seria possível caminhar. Talvez os outros dois pudessem, ele não. Na verdade, nenhum, embora algo sempre iluda como bom caminho. Traçados nítidos, na ilusão de sua suficiência, não bastam. Na certeza que a ausência de sombras assegura, o domínio é o da incerteza do próprio corpo exposto à luz. Ilusões da possessão, do poder de ser possuído ou de tomar posse. Passar por um caminho em um momento não assegura a mesma passagem, da mesma forma, no momento seguinte, essa a certeza sempre precoce. As ilusões da suficiência esbarram no convite a fazer corpo a ela. É pelas frestas da suficiência que o corpo escorre, mesmo que, na superfície, só seu suor, só seus excretos manifestem os efeitos dos esforços de aderência à ilusão. Seus preciosos excretos a se perderem no inesperado, no impreciso, na imponderável demanda a um outro. É a demanda que cria a impossibilidade da dádiva.
O terror da obediência que disfarça a recusa de servir constrói a ineludível impossibilidade do zero.

O um
O um era então pura imagem que ao se apresentar já anunciava uma ausência. Para além do organismo, é ela que faz o desenho do que pode o corpo. O contínuo desenho do corpo cria a superfície lisa para a qual conflui tudo o que vibra descontínuo sob a pele. Recuar da pele, trabalhar a composição dos fragmentos no entre da imagem na qual se faz um, todo um esforço. Sob o um o organismo ainda é sangue, esperma, merda, urina e suor que a imagem elide para criar corpo. Ou não. Falamos do espírito, mas é o corpo-organismo que nos aterroriza em sua possibilidade de retorno após ter sido descomposto. Impossibilidade do um.

O dois
Contra a imagem do corpo pulsa outro corpo como pura imagem que ameaça se desfazer. Para que a imagem se realize é necessário que um outro corpo surja e a ameace. Há pelo menos dois outros do um. Esse corpo que é próprio e o outro que se faz imagem na qual o desejo se perde. No entre dois, além de seu limite, é a própria descomposição que constrói a expectativa. Impossibilidade do dois.

O três
O mais um do dois é o que chega sem aviso. Pensar que isso é a ordem barra o acesso ao terceiro. Não se quer saber que o que separa une. Ambigüidade do três que entre dois os faz descontínuos. Dois é sempre menos um. O menos um os cria. Caosmos.

Cidade-um
O homem caminha pela cidade e recorda o cego que a reconhece moderna. A cidade é moderna, repete o cego a seu filho que nela chega sem tê-la ainda percorrido. A cidade é sempre moderna e por isso não se vê. Ama acolher cegos e odeia viseiras que limitem o olhar. Ela se dá, abre suas direções a todo e qualquer um. Mas ela se estria e então não se vê. A cidade que não pode ser vista se salva no liso aparente de sua superfície. Acolhe a proximidade dos corpos e traça caminhos para cada um deles. Oculta-os na proximidade dos muros, estabelece suas distâncias. Mínimas distâncias que tornam visível o que não se vê. Na cidade das ocultações todos os corpos se refletem e se separam nos muros que os definem e os limitam.
Sem sombras, a cidade é sempre um renovado pesadelo sob o sol da meia-noite.

Cidade-dois
Criar o necessário. Ao perder-se do caminho de retorno, não lhe reconhece mais as pedras, as estrias, as saliências e os desvios. Sabe que estão ali, a sua frente, mas não sabe se o corpo suporta sua travessia. Seria necessário um outro, que tivesse mergulhado antes nesse esquecimento que a memória não supera. Mais que saber, conhecer, criar o sentido. Mais que caminhar, conhecer o caminho e o sentido das pedras, das estrias, das saliências e dos desvios. O esquecimento desfaz os atalhos. O fácil não há.
Houve uma caminhada que se quis até a exaustão. Eram dois dos três, altivos no entusiasmo do começo, dispostos ao sol. Foram além do possível, sem pensar que um caminho se faz duas vezes quando o desejo é só de uma aventura. Pois era isso. A volta era incerta, o desejo não, o que fazia do ir um quase nada pronto a ceder perante a extinção da luz. Há o que não dura, algo que se aprende do caminho após tê-lo percorrido uma primeira vez. Percorrer de novo é sempre um excesso a que corpo nenhum se dispõe, mesmo sendo a isso que se obrigue. Como o dos dois, cediços no temor à noite. A volta frustra na boléia do caminhão, a memória do primeiro ensaio de partida que não chegara a ser. A cidade sem sombras ainda iria durar contra todo desejo de partida. Talvez para sempre, onde quer que os passos ensaiem as formas de caminhar contra o um.

Cidade-três
Certo. A cidade é sem sombras, e isso não a faz segura. O corpo deseja as sombras, a cidade as recusa. Mais. Força os gritos do corpo que se furta à luz, que devem soar nítidos e cristalinos quando o corpo encontra sua clausura no ponto mais alto da cidade. Os gritos do corpo advertem a todos os outros sobre as ameaças que pairam sobre aquele que se furta ao visível. Ocupar o ponto mais alto, ser ocultado na suprema visibilidade da cidade é a contínua ameaça à revolta contra o organismo que os olhos insistem em tornar um. Fragmentado, única forma de estar nu, esse é o corpo que busca compor-se quando se põe a caminho, em retorno à cidade.

Cidade zero
Esse é o ponto de forçagem. Não há retorno que não seja contra a cidade couraça, não há cidade que se oponha ao retorno que não seja, desde o princípio, essa uma. Um corpo só se afirma se despedaçando contra os muros, para além de seus gritos e contorções. Antes, um corpo apaziguado abandonando seus órgãos. Agora, esse outro que dispensa os órgãos em cada esquina para encontrar-se intenso. Seu grau zero.

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Imagem: foto de divulgação da peça musical La haine de la musique [Ódio pela música], da Compagnie Philippe Saire [Suíça], apresentada no Brasil em 2001 [34. Festival Internacional de Londrina - Filo 2001 e Teatro Sesc-Anchieta, São Paulo].