segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Da maestria

Supõe-se, quase sempre, que de tudo que um mestre deseja, o mais central é conquistar discípulos. Suposição que, se pode ser dada como óbvia, ao ser assim pensada, leva ao encobrimento de uma armadilha, das mais fatais para a própria existência do mestre. Pois se é inevitável que um mestre precise de discípulos (essa talvez primeira forma de intercessor e/ou interlocutor), já que de pouco valeriam suas palavras e seus saberes se não houvesse a quem dirigi-los, ou quem os movesse, ou quem os fizesse proliferar, a persistência do discípulo no lugar de discipulo rapidamente transforma-se na morte do mestre. Não há nobreza [e][ou] sabedoria [e][ou] firmeza de princípios [e][ou] força desejante [e][ou] possibilidade de defesa do mestre que o salve desse destino, o de ser morto ou destituído por aquele que o consagra em seu lugar de mestre.
Caminhemos atentamente. Ser morto ou destituído como mestre não é, necessariamente, um mal. Ao contrário, pois não há mal pior do que o de desejar fixar-se e perpetuar-se na posição cristalizada de uma identidade. Se assim pensarmos, veremos rapidamente que nada mais desejável para aquele que ocupa, temporariamente, o lugar de um mestre que ser morto ou destituído por seus discípulos. Afinal, de que valeria um mestre capaz unicamente de produzir (eternos) discípulos?
Quando falo, então, dos riscos do mestre, aqueles que levam a sua destruição, devo insistir que não é o discípulo que destrói o mestre, mas que a fatalidade do mestre está na persistência do discípulo enquanto discípulo.
Vejamos. O que produz o discípulo, num primeiro momento, é um certo encantamento que a palavra do mestre produz nele. Muitas vezes não se trata sequer das palavras e seu peso, seu sentido, sua potência de agenciamento, mas de um certo jeito, de uma certa maneira de articular as palavras, tais e tais gestos que geram no discípulo um olhar e uma escuta encantados, não raro fascinados. Será movido por esse estado – um charme – que o já capturado discípulo aproxima-se daquele que ele eleje como seu mestre. A partir daí, ele irá se fazer presente a cada manifestação do mestre, à espera daquela frase, daquele gesto, daquela entonação que o faz sorrir e reconhecer, no outro à sua frente, sua própria consistência, sua própria materialidade.
Isso pode se estender por muito tempo. Pode não passar disso, dessa reiteração constante que faz da presença de um a certeza da presença do outro. Se permanecer aí, a existência do mestre pouco irá se alterar. Acostumado a essas presenças fascinadas, o mestre sabe muito bem que elas são efêmeras. Um dia o discípulo fascinado se cansará, elejerá outro mestre a quem seguir e a quem fazer responsável por sua própria consistência. Mesmo assim, por menor que seja, essas fascinações oferecem um risco ao mestre. Um risco narcísico, o de se deixar encantar por essas presenças fascinadas, fazendo desse seu agora encantamento sua armadilha: conservar-se sempre o mesmo, medindo cuidadosamente as palavras e os gestos capazes de sustentá-lo nessa posição, jamais se desviando disso que supostamente assegura a sustentação desse território tão belamente constituído... como se fosse um jogo de olhos que se eterniza.
Esta é a primeira morte do mestre, esse fascínio consigo mesmo que se afirma do fascínio que produz em um outro. [cont.]


* Texto em construção, iniciado em 19 de novembro de 2007, a continuar sabe-se lá quando [nota do dia 19 de março de 2008]
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Imagem: Escher, Moebius Strip, 1963.

2 comentários:

Duda Bastos disse...

Excelente texto. Algum sinal ou indicação da continuidade do mesmo?

Valter A. Rodrigues disse...

Por ora, Duda, experimento esses estados para onde nos leva o exercício da maestria (desejando-a ou não, desejando-os ou não). Mas hora dessas ele continua...