terça-feira, 25 de março de 2008

Triângulos

A emergência de um terceiro no casal que constituímos com outra pessoa nos ameaça com o risco da perda, isso todos sabemos... Mas o que, efetivamente, estamos perdendo? Claro, aquele que amamos (às vezes não tanto mais), seu afeto (às vezes não tão intenso), sua presença (nem sempre tão presente)... Certamente, perdemos, muito mais, nossa referência, nossa composição, nosso corpo/alma que aprendeu a existir em relação com essa pessoa que amamos (ou que supomos amar) e que às vezes nem sequer consegue respirar sem ela, tão indistintos nos tornamos... Perdemos nosso corpo ao perder o outro corpo que nos dá essa dimensão do que somos... perdemos nossa suficiência, nosso território até então habitável. E tudo porque um terceiro emergiu nessa vida idílica que é tanto vivida como sonhada (às vezes mais sonhada que vivida).
O outro, o invasor que se torna alvo é, então, em todos os sentidos, uma ameaça à nossa integridade (mesmo que seja só uma pequena integridade). E ele é ameaça por que, provavelmente, conseguiu provocar nesse outro (amado), que nos constitui, mais alegrias que nós próprios conseguimos produzir (ou que conseguimos ter com ele). Eles se compõem melhor, é uma alegria maior, um prazer maior... É, enfim, a evidência de que não somos bastantes para essa vida a dois sonhada.
Quando estamos com alguém, criamos alguns hábitos, tanto os atravessados por acontecimentos intensos que nos alegram como aqueles que, por nos entristecerem, preferimos ignorar. Afinal, que relação não tem seus momentos alegres alternando com os tristes? Os tristes nos distanciam, nos calam, com freqüência deixamos passar (afinal, há o medo de maior distância se cobramos, se exigimos, se trazemos à baila o desconforto... são muitos os riscos...). Mas, bem ou mal, temos lá aquele outro ao nosso lado, aquele corpo que nos aquece quando sentimos frio... Tudo vai bem, até que aparece um terceiro que nos retira desse conforto (que pode ter se tornado já um tanto morno). E de repente aquela nossa pessoa querida se mostra animada de outra maneira. E não é por nós. Alguém a alegra mais que nós!!! Sinal de que nossos laços não eram tão fortes assim (rica, essa nossa linguagem: o que nos anima e nos liga e nos compõe designa também o que nos prende). E quem expôs essa evidência foi um terceiro que nem sequer conhecemos. Como não odiá-lo? Não fosse ele, nosso mundo perfeito e cômodo continuaria.
Partimos, então, para o ataque ao terceiro que nos desloca: que tal desqualificá-lo? Essa é uma estratégia, principalmente quando não o conhecemos, mas podemos imaginá-lo. Que tal ameaçá-lo, infernizá-lo, perturbar-lhe a alma... talvez ele desista. Tudo isso é mais fácil do que perguntarmos por nossas próprias composições com nossa "cara metade"... por aqueles estados de alma que, de há muito, já não vivemos, não experimentamos em sua companhia. Isso vale também para o ciumento obsessivo, que nem sequer precisa da existência do terceiro para sofrer. Só sua possibilidade é já um tormento. Ele se torna, então, um atormentador distanciado. Vigia tudo, está sempre atento ao menor gesto suspeito ("que alegria é essa em sua cara, hein?". Aquele que faz essa pergunta sabe que essa alegria não é com nem por ele, já que, vigilante, nunca está junto, de corpo inteiro com o vigiado.
Dizem tanto que o ciúme é o tempero da paixão ou do amor que é bom verificarmos como esse tempero potencializa (como o ajinomoto dos orientais...) o sabor amoroso ou o excede. Se é impossível evitar o tempero, é bom perguntar pelo que ele nos ensina.
O ciúme é um afeto triste. Seja ele imaginário, seja ele produzido por um outro em nosso caminho, ele é via do ódio (que eu chamo de "alegria dos que são tristes"). O estado amoroso, em sua intensidade e sua incerteza é tanto o desejo da própria alegria como da alegria do outro. É um canto afirmativo: existimos, podemos, consistimos. Se estamos com alguém, e nos compomos alegremente com ele, tornamo-nos outro, um outro ser realmente mais belo e forte do que quando sozinhos. Amar é tanto a realização da vida como seu conhecimento. O que quer que nos separe disso é tanto a tristeza da vida como sua ignorância. Só amamos na plena potência de existir, só conhecemos na plena potência de pensar. O que quer que nos separe da vida (e de nós, e do outro) nos fragiliza, nos anuncia a insuficiência de ser. Nossa impossibilidade.
Então, que aprendamos com esses afetos, alegres ou tristes, que nos movem o querer. Sem experimentá-los, não saberemos como e o que podemos ser; experimentando-os, aprendemos como ser, criamos nossos contornos. E esse outro que nos surge, repentino, e nos alegra (ou às vezes entristece), que seja nossa via régia, nosso bem, nossa força. Só assim toda forma de amor vale a pena...
Para concluir (provisoriamente): a emergência de um terceiro em uma relação pode ser o contrário do sofrimento: pode ser o momento de olharmos para nossos estares com a pessoa que dizemos amar. Pode ser o momento de nossa máxima alterabilidade, da descoberta de nossas melhores forças. De nosso melhor encontro. E, por que não, de nos tornarmos gratos ao que aparece para nos perturbar em nossas plácidas certezas. E se "perdemos", que a perda nos ensine a ser mais sensíveis às intensidades do que até então pudemos ser.

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Imagem: fotograma do filme
As cinzas de deus, com Cia de Teatro Físico Zikzira e direção de André Semenza.

7 comentários:

Duda Bastos disse...

Viva o terceiro! A possibilidade de negá-lo ou adquirí-lo. E a coragem e lucidez para ambas as coisas. Para ambos os martírios e ocasos da performance de mãos dadas pela vida. Mas viva, ainda, a reconstrução e a desconformidade de sentimentos, tão humano, tão possível. Cuidado apenas, pois todo salvador torna-se-a mártir. Obrigado por esse texto Valter.

Liliane disse...

que interessante o seu blog!
Posso conectá-lo aos meus?
Tenho um particular e um de psicologia social.
Abraço grande

Unknown disse...

Não há ser humano sem luta. Cada um sofre o seu tanto para ser o que é. O sangue derramado, fruto do amor à causa a que se dedica é a prova de que a luta aconteceu. Sangue é metáfora do sacrifício. Dizem que o Sagrado é a realidade que foi separada para ser ofertada sobre o altar preparado. Acho bonito pensar assim.Sacralizar é o mesmo que resguardar realidades particulares e públicas, zelando para que não corram o risco da banalização que profana e esvazia o significado...
Ótimo texto Valter, parabens.
Fabiano.

666CM disse...

como triângulos, uma família é esboçada no momento da geometria, cabe ao casal traçar, o que sair não será destino, mas sim a matématica geométrica, que é a vida particular.

Emanuelle disse...

"...Sem experimentá-los, não saberemos como e o que podemos ser; experimentando-os, aprendemos como ser, criamos nossos contornos."
Esse texto é todo rizomático, mesmo... não sabemos o que podemos ser, o que podemos compor, ainda mais se for com o terceiro. O terceiro aparece, é inevitável, os encontros são inevitáveis. Ele nos tira de uma posição passiva, nos remete aos desejos. Se isso te tornas algo melhor do que és, eu diria que o terceiro será sempre bem-vindo.

Saraswati disse...

Bem, eu acho que... esse texto é parte do meu vivido. Por acaso Valter, vc se inspirou na minha passagem??? afetos sempre...

Valter A. Rodrigues disse...

Oi, Saraswati, não me inspirei em nenhuma situação específica. É que os encontros costumam acontecer assim, as inseguranças também, nossas angústias e agonias e medos também... e também... Sem que isso seja modelo, o que não conseguimos evitar são essas dores das perdas e as dificuldades de lidar com elas...
Para começar a aprender a aprender a vida e seus encontros, outro dia li em Maturana algo óbvio e genial: se um outro provoca afetos em você, não diga que ele é o causador desses afetos, não o acuse nem o exalte, pois esses afetos acontecem em você...